definição

poesia é a especiaria que ativa as pupilas gustativas da língua

quinta-feira, setembro 22, 2005

do uivo ao sussurro

Hoje não consegui dormir direito.Já estava meio deprê. Cheguei sem sono de Campos, onde dou aula e fui ler umas revistas. Pego a “EntreLivros” e começo a ler uma matéria super bem escrita, do Manuel da Costa Pinto, sobre o futuro cânon da literatura brasileira. O autor começa a matéria analisando a poesia contemporânea brasileira. Gosto muito. Acho que ele tem razão. Ele fala das linhas de força da produção - a que vem de 22, com de Mário, Bandeira e Drummond numa vertente e a que vem de Oswald, João Cabral e concretos, de outra. Fala dos que foram influenciados pelos surrealistas e beats (que tem Murilo Mendes e um certo Jorge de Lima como ícones).

Aí, começa a dar nome aos bois. Dos seis que escolhe para serem nomes importantes na futura literatura, convivi com dois. Fabio Weintraub fazia oficinas de literatura comigo na Casa Mario de Andrade lá em Sampa. Eu morava em São Bernanrdo, mas is lá ter aulas com gente tipo Leminski, Duda Machado, Philadelpho Menezes, ouvir Ferreira Gullar, Adélia Prado, Zé Paulo Paes...Fábio, muito articulado, se juntou com outros poetas e, como eu no ABC, organizou um grupo de estudos e produção de poesia que se reunia lá na Mário mesmo –o ‘Cálamo’. Eles, como o ‘Pimenta Meeting’ no ABC, começaram a fazer saraus poéticos em Sampa. Isso era meados de 90. Sempre que nos víamos, trocávamos figurinhas. Fui ao lançamento do seu primeiro livro. Não gostei, não comprei o segundo e não sabia que o terceiro deu uma guinada poética. Vou comprar esse tal “Novo Endereço”. Fábio também se tornou editor, e começou a publicar Hilda Hilst numa época me que ninguém sabia quem era mais. Só por isso ele já mereceria um lugar na literatura.

O segundo é o Heitor Ferraz. Eu o conheci por intermédio de Humberto Werneck, jornalista e, na época, editor do Idéias do JB. Pedi que ele me apresentasse poetas novos e promissores, porque eu queria fazer um sarau no Clube de Criação de SP, isso devia ser 1992. Ele me falou do Heitor. Fui atrás. Ele trabalhava no jornal da USP, era super tímido. Foi um sufoco fazê-lo concordar em ler poemas em público. Naquele sarau juntei ele, o Cláudio Daniel, que na minha opinião faltou na seleção da revista (e dele eu gostei desde o primeiro livro), o Elson Fróes( que fez um site muito legal de literatura – o Pop Box) e eu. Quando Heitor lançou o primeiro, fui lá, comprei, li e também não gostei. Curiosamente, o autor do ensaio da Entrelivros diz que no terceiro livro o Heitor também dá uma guinada. Vou precisar comprar e ler.

Então fui olhar meus livros – que não estão editados – e percebi que no terceiro eu mudo, de dicção. Não sei se isso representa uma guinada. E, então, fiquei com aquela sensação de que perdi o bonde. Fui olhar a quantidade de coisas, envolvendo literatura, cinema, artes plásticas, que eu tenho e estão engavetados ou no HD. E fiquei mal. Projetos de instalações de artes plásticas, performances, projetos de semanas literárias, de oficinas. Tudo aqui. Muitos deles saíram da gaveta para alguma outra gaveta dos vários lugares onde os apresentei – Macaé, Campos, Cabo Frio, Rio das Ostras. Aí, cansei, e eles ficaram se acumulando, porque eu não consigo parar de ter idéias.

Lembrei de uma música que dói muito quando ouço, não sei se vocês conhecem. Chama-se Guardanapos de Papel, e o Milton Nascimento interpreta. Fala dos poetas que vivem em todas as cidades e os descreve tão bem que machuca. Aí vai um pedacinho:

“(...)se contentam
com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros
submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
alcançados, cansados, cansados

Mas nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem.(...)”

Quem quiser ouvir está no disco “Tambores de Minas”,de 98. Ah! E pra ver que eu tô pra baixo, mas não desisto, aí vai: eu e uns colegas professores e alunos vamos ler, dia 5 de outubro, pedaços do poema “Uivo”, do Allen Ginsberg, lá na Faculdade de Filosofia de Campos. É que o poema completa 50 anos da primeira leitura e continua produzindo o mesmo estranhamento e horror na maioria das pessoas que, em seu senso comum, acham que poesia é feita de versinhos doces sobre a amada. Uma provadinha só, hein?

Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa,
"hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando
sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis
apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das
cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados
das casas de cômodos,
que passaram por universidades com os olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake
entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos e
publicarem odes obscenas nas janelas do crânio(...)”

....................

Esse poema foi lido pela primeira vez em público, dia 8 de outubro de 1955. Foi publicado no ano seguinte e foi proibido. Juízes mandaram tirá-lo das livrarias, como mandariam hoje, no Estados Unidos do fundamentalista Bush. Puxa, agora melhorei de humor...Sabe, é que como dizem os editores, poesia não vende. Mas também não se vende. Nem se venda. Ela dá a ver.

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