definição

poesia é a especiaria que ativa as pupilas gustativas da língua

terça-feira, outubro 04, 2005

a poesia suja

Estamos assistindo por estes dias muita coisa imunda: rescaldos de Katrinas, política-latrina. Nas oficinas poéticas que coordenava em Sampa, eu lia A Carniça do Baudelaire (1821-1867) para mostrar como o feio, o grotesco, o não-poético passava a fazer parte da poesia no início da modernidade.

Isso tudo aparece com força nestes dois poemas que estão comemorando algumas décadas da primeira leitura. O Uivo, de Allen Ginsberg (1926-1997), é um poema nada respeitável de 50 anos – a primeira leitura aconteceu em 8 de outubro de 1955, e o Poema Sujo, de Ferreira Gullar(1930), um texto jovem de 30 anos– as primeiras leituras aconteceram em novembro de 1975, no exílio de Gullar em Buenos Aires, ele lendo para Vinicius, Boal e outros (foi assim que o poema chegou aqui, gravado em fitas, com a leitura do Gullar passando de ouvido em ouvido). O palavrão, a descrição crua, a gíria, a política, a micropolítica, a história, a sinceridade ‘absoluta’. A vida como ela é.

A primeira vez que li os dois poemas, foi realmente um choque. Não o choque que tive quando fui apresentado para a poesia moderna, com o Poema só para Jaime Ovalle do Bandeira. Naquele tempo apenas fiquei impressionado em como poderia estar apreendendo uma forma de existência que era o poeta com sua melancolia, sua solidão, suas recordações – tudo aquilo se tornara eu.

Com Ferreira Gullar, eu tinha engolido o livro ‘Dentro da noite veloz’, e fiquei imensamente influenciado. Vários dos meus primeiros poemas oscilavam entre o bandeirês, o drummondês ou o gullarês. Quando cheguei ao Poema Sujo, vixe! Fiquei meio embaraçado, não necessariamente chocado. Mas lê-lo foi uma travessia, não agüentei de uma assentada. Fui lendo aos bocados. Sorvendo devagar o susto. Compreendendo.

Então, muitos anos depois, Uivo me deu aquilo que eu realmente não queria v(l)er. O lado negro mesclado à luz, o demasiado humano, eu nu. Nunca pensei encontrar um poema assim. Quando comecei a ler certas partes do Uivo em saraus e performances, passei por estranhas experiências[1]. Seqüências de arrepios, tonteiras, escotomas e, numa das leituras, a boca começou a sangrar enquanto lia a ‘Nota para pé de página de Uivo’, manchando a página do livro até hoje. Me senti recebendo ‘santo’. E olha que sou evangélico.

Dificilmente cometo um poema gigante, tenho verdadeiro nojo de poema prolixo. Só que os dois poemas em questão são enormes e ordenam o caos aparente das muitas palavras com sua construção, uma estrutura bastante pensada. E eu admiro a arquitetura, o conceito que engendra o poema. Nestes dois, a poesia nunca é liricazinha, de versinhos chumbregas sentimentalóides. Uma poesia forte, de sentido trágico, nietzschiana. Se você tiver coragem de enfrentar, leia. Se não tiver, leia também, como homenagem a dois poemas americanos que pensaram o mundo e a vida admiravelmente. Em homenagem a dois poetas americanos que foram ativistas, engajados nas lutas de seu momento histórico, querendo mais e mais democracia, justiça, igualdade, paz. Em tempos de porcarias como ‘burning bush’ e ‘lula frito’, nada melhor que a sujeira da poesia.



[1]Brincadeirinha: ‘Estranhas experiências’ é o nome do último livro de Cláudio Willer, enorme poeta e maravilhoso tradutor do Uivo.

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