definição

poesia é a especiaria que ativa as pupilas gustativas da língua

terça-feira, dezembro 06, 2005

ofício pífio



Fazer um soneto deve ser fácil

Como roubar o doce da criança

Uma simples questão de conta dáctil

E se for preso pagar a fiança

“É muito feio roubar desse jeito,

É covardia”, dizia a polícia.

Mas arte exige um crime perfeito

E não contavam com minha astúcia

Criança que rouba criança tem

Cem anos de perdão, então eu posso

Fazer e não devo nadica a ninguém

Só a você hipócrita leitor

Que vai ver preferia poesia em vez

Dessa contabilidade sem valor.

sábado, dezembro 03, 2005

a poesia de cor

tempus e modus amantis.
compor&inventar
bricolleurs
das sutilezas
entre o que
existe apenas
e o que
é.
tons tônus tunes
plasticidades matéricas: brilho opaco

trans-lucidez
através o que se vê
não-tudo o bastante
uma escolha entre
escolho que acolhe o que (se) passa

pulsos

da finitude do deslimite
desejo feito cicatriz sobre o real
raso irrisório risível

selo do indizível.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Setenta anos da morte de Fernando


“As palavras não fazem o homem compreender, é preciso fazer-se homem para entender as palavras.” Herberto Helder

Pessoa no plural mesmo que singular: Alberto Caeiro, Ricardo Reis (que morava no Brasil), Álvaro de Campos, Bernardo Soares. E tantos outros que vieram com ele, que nele habitavam. Como em nós. Na verdade, não temos a dedicação e atenção necessária para perceber quantos somos. Para identificar cada um em nós, dar-lhe nome, biografia, desejos e propósitos. Pessoa assim fez. Deu nome, data e local de nascimento, mapa astral, personalidade e obra a vários. Nós nos satisfazemos, e por vezes, nem queremos ser a pessoa que somos. É preciso aprender com Fernando a ser pessoa no plural, fazer de cada existência virtual em nós uma possibilidade positiva.

Setenta anos da morte de Fernando e setenta e cinco de Herberto vivo. O grande poeta místico e carnal da língua portuguesa contemporânea. Herberto Helder. Quarenta e cinco anos tem Adília Lopes, a poeta pop, que provoca enorme rebuliço com sua obra e suas aparições na tv. Adília que disse numa entrevista: “Clarissa de Erico Veríssimo, descoberta aos 10 anos (em 1970), foi a porta por onde entrei na literatura. (...) A partir do texto de Erico Veríssimo, da Clarissa, percebi que ia ser escritora e que a literatura era a minha casa.”

Fernando dizia “a língua é minha pátria”. Caetano completou não ter pátria, mas mátria e querer frátria. É bom que a gente faça da nossa língua pátria uma frátria, escolhendo também leituras de criadores portugueses. É preciso conhecer Herberto, Adília e tantos outros. Eles falam a mesma língua nossa. E descobrirmos Portugal já está na hora. Para isso é preciso atravessar o Cabo Saramago e lançar-se ao mar português. Porque, como diz Fernando “o mar com fim será grego ou romano/ o mar sem fim é português”.

Aqui, uma pequena viagem, ou uma garrafa lançada que chega até Cavaleiro, com estas mensagens cifradas:

“Meus olhos resgatam o
que está preso na
página: o branco do
branco e o preto do
preto.”( A leitura/Herberto Helder)

“Os gostos e os desgostos/levam ao poema/como podem levar/ao precipício/o poema fala do precipício/ lá haverá choro/e ranger de dentes/e não haverá Kleenex/nem o Dr. Abílio Loff/o meu querido dentista/o poema fala do precipício/evitado a tempo/o mau poema não mata/(mais vale burro vivo/que sábio morto)” (Adília Lopes)

segunda-feira, novembro 21, 2005

o poema do FestCampos

o poema aí de baixo foi o que se classificou mas não levou.
no concurso havia poemas tão bons quanto ele que também não levaram.

rita it ra ira tira ir art tria





primeiro o sonho sangue e água um útero quente

então o passar o pássaro paz

é só chamar fantasia fantasia e ele vem pra mãe

contra a teleologia uma escatologia

rita feminino de rito

ao fazer um barro esbarro na vida

linhas volumes cores cheiros temperaturas rugosidades lisuras

sete ritas compondo sete rotas no silêncio

o silêncio antecede a palavra

a palavra

cede

ante

o silêncio

não eu ou tu ou nós ou eles

voz

se fazendo

lavapedracorpo

depois o sonho vapores fumaça vermelho*

ver-me

ver melhor


* vermelho é adam no hebraico.

sexta-feira, novembro 18, 2005

mais pesado que o ar


meu filho queria pegar pra ele

um casulo

preso no muro

lá fora

eu disse

“dali vai sair uma borboleta

não pode tirar senão não nasce”.

quando cheguei de noite

o casulo estava lá

dentro de uma das caixinhas plásticas dele.

imaginei saindo dali

uma lagarta com asas

como o pelicano de Baudelaire.

smell trouble

They could see the trashers coming

And the water shone like diamonds in a dew

It was then when I knew I’ve had enough

Burn my credit card for fuel”(Neil Young-Trashers)

lua cheia

um cheiro de podre

aqui dentro

hamlets e baudelaires

não ajudam

o gato atropelado

lá fora

- exala-se -

preciso isolá-lo

em plástico preto

faz-se assim

com algo como isso

- exila-se -

era um gato preto

azar o dele

memória olfativa

é a mais efetiva

pode-se esquecer tudo

menos o cheiro

da morte

segunda-feira, novembro 07, 2005

submundo


No metrô do Rio, sentado ao meu lado. um senhor idoso. Careca, os óculos quadrados.A expressão.como definí-la? Era Drummond.Fiquei ali, engasgado, com a admiração e as perguntas entaladas.Ele, ali. As pernas cruzadas. As mãos sobre as pernas. Tantos poemas que me fiseram mais vivo saíram daquelas mãos, daquela expressão daquele rosto. Eu, sentado ao lado daquele homem numa transversal do tempo no submundo urbano. Isso foi semana passada. Fuçando nas coisas ontem, no feriado de finados, descobri uma matéria de 28 de março de 1990, da Veja. Falava sobre a Lygia. A mulher que Drummond amou por 36 anos. Não, não era sua esposa.Talvez tenha sido a única matéria na imprensa que dá nome à musa do poema em que Drummond confessa: "na curva perigosa dos cinquenta derrapei neste amor".Drummond, 49.Lygia, 28. Um amor silencioso para nós, que rendeu muito, além da trilogia inédita que a família não deixa publicar - Lira dos trocados e Lirálio I e II. Lio era apelido de Lygia.O homem Drummond, aqui ao lado esquerdo.

domingo, novembro 06, 2005

dark

a sombra sou eu hoje passo sobre as coisas superficialmente torno tudo opaco anti reflexo do que nego no poço sem fundo de ecos trecos sapos flutuantes no caos escuso a luz é ela ela que produz sombra quado espanca as coisas com calcinada clareza a sombra estanca tanta certeza a sombra da chama acesa é talvez outra leveza

face de dois gumes


a vida vira a outra face
outra face a morte
outra face a morte não
a morte não a morte
a morte
revida

traduzir

as palavras suspensas
de poesia
enquanto minha língua
noutraduz

sábado, novembro 05, 2005

tao e qual

no princípio do prazer
criou deus a realidade

a realidade era amorfa e oca
e ruah se movia lânguida
sobre as faces do aprisco

então disse haja luz
e os olhos ônix das ovelhas se abriram
novelos branquíssimos como luas ou nuvem
brilhando na noite das íris das ovelhas

e descubro qual a guerra
entre pensamento e dia e noite
que stevens diz never ends

entre poesia e poema
tinta negra e página branca
palavra e coisa

a origem da idéia do bruno


a idéia do ameopoema do Bruno saiu da minha marca para terrorismo poético, feita ainda no ano passado, em outubro, quando eu já estava insatisfeito com o governo do PT, mas sem saber como expressar essa angústia...bem antes dessa crise toda.

era um ato poético-político.

bruno fez arte

tales from topographic oceans


"um amor assim violento
quando torna-se mágoa
é o avesso do sentimento
oceanos sem água" Caetano


álgido
o silêncio no mar
da tranquilidade ensina essa
violência volatilizada
- um dia a luta contra a pedra cessa

azul-néon
a lua cheia e seus oceanos sem água
glacê de paz sobre a fúria do mar

sexta-feira, novembro 04, 2005

rosebud


pétalas presas
num círculo

de surpresas

uma história da criação


no princípio era o verbo ele trazia em seu ventre um pronome mas não bastava quase nada se pode criar apenas com verbo e pronome no princípio era a palavra tudo e assim tudo se fez no princípio o pai os criou no princípio à sua imagem e semelhança crianças e o tutor de um e uma escolhido a dedo: lúcifer mui amado do pai se pudesse lúcifer o amaria ainda mais porque foi escolhido ele se entregou de alma e alma à tarefa um e uma aprendiam depressa o universo nem parecia infinito para seus pequenos olhos famintos aprenderam com lúcifer principalmente a amar tudo e o pai e mui amavam lúcifer e lúcifer os amou sobremaneira tanto que desejou intenso ser pai o equilíbrio não pôde suportar o amor assim assim lucifer fez o presente tornar-se serpente

terça-feira, novembro 01, 2005

paisagem na neblina


I

céu um teste de rorschasch

figuras formas fluxos

uns sentidos sem centro

despropósitos desprovidos de culpa

II

uma coisa é nadar contra ou a favor

outra é tornar-se um com o corpo do rio

sua terceira margem

III

tchernozion areia argila

talvez explique tudo

o punhado d q pó

com o suor do rosto do deus ou sua saliva

IV

as centelhas do pensamento

as labaredas do sentimento

(chama azul e zen: zoe)

terça-feira, outubro 25, 2005

romancero gitano

a palavra cigana

que o poeta espera

mas sabe:

pode não vir

a palavra cigana

chega de chofre

não se sabe de onde

exigindo guarida

imperativo deixá-la

ficar

preparo mesa banho cama

dia seguinte some sem mais

deixa um presente:

antes que parta

o sangue nas costas

a cica na boca

as cartas na mesa

minha porta

aberta

e o poema

inconcluso.

quinta-feira, outubro 20, 2005

Teoria do inutensílio

“Tudo aquilo que não leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado, como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia.

Um homem jogado fora também é objeto de poesia.

Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia.(...)

O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta.
Uma veia aberta.” (Manoel de Barros –Matéria de Poesia)


“Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico. O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade. Existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultra-violeta ou infra-vermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida.”(Paulo Leminski - Inutensílio)

Estes textos devem servir para que eu lhes diga do valor do trabalho do poeta. O trabalho do poeta é produzir inutensílios. Produzir coisas que não servem para serem usadas. Porque poemas são coisas para serem fruídas. Agostinho é quem falava destas duas categorias. O poeta trabalha pelo princípio do prazer e não pelo princípio da utilidade. Numa sociedade que só valoriza o lucro, o trabalho do poeta é rebelar-se contra a ditadura da mercadoria. Sou pela poesia que não vende – de vendar e vender. A poesia não se vende nem põe venda. A poesia se dá. A poesia dá a ver. Revelação do real. Criação. No principio era a palavra.

Tudo isso a propósito do Dia Nacional do Poeta, 20 de outubro.

terça-feira, outubro 18, 2005

essa é antiga

problemas... sempre existiram
(gessinger)

não fui eu
não foi você
nem foi a máquina de escrever
que matou a poesia
não foram os Deuses
nem foi a morte de Deus
não foi o jabá da academia
que matou a poesia

o fim de semana
o fim do planeta
a palavra "sarjeta" no fim do poema
problemas... sempre existiram
esteróides anabolizantes
(samplers)
dicionários de rima
o medo do fim no final das contas
problemas... sempre existiram
sempre existirão

a última palavra é a mãe de todo o silêncio
façamos silêncio para ouvir o último suspiro
descanse em paz a mãe de todas as batalhas
a última palavra é a mãe de todo o silêncio
descanse em paz, dê o último suspiro
façamos silêncio para ouvir o último poema

? por que você não soa quando toca?
? por que você não sua quando ama?
! ninguém derrama sangue
quando perde guerras de fliperama!
? por que você não sua quando toca?
? por que você não soa quando ama?
? por que você não soa quando toca?
? por que você não sua quando ama?

as mentiras da arte são tantas...
...são plantas artificiais
artifícios que usamos
para sermos (ou parecermos)
mais reais
um pedaço do paraíso
uma estação no inferno
uma soma muito maior do que as partes:
as mentiras da arte

(o último poema)

segunda-feira, outubro 17, 2005

boate bêbada (lembrando rimbaud)

boladona
bela donna
i feel love até o chão

a pele ébano
uma tigresa
um bolero lero

a pista em alta velocidade
vertigens
e a maresia

sexta-feira, outubro 14, 2005

corpo caos


queria tatuar no corpo
um conjunto de mandelbrot

se olhar de longe parece um coração
mas não

quarta-feira, outubro 12, 2005

inserto

no monitor
trilhas caóticas
insetos tomam conta da página
por entre as linhas
buscando
o calor
e a luz


mon hipocrite lecteur
tira do poema o que eu não posso dar

isto que vem de fora
é poesia

segunda-feira, outubro 10, 2005


"a poesia é corporal"
octavio paz

geheimnis



mistério

em alemão

ir para casa

toda busca empreendida

sai da tua casa da casa da tua parentela e vai

por isso deixará o homem a casa de seus pais

porque na casa não tinha chão

o chão é pura metafísica

e é preciso ser imanente

saber o fundo

tocar a terra no submundo

a terra vermelha

como Adam

o vermelho

índio

chegar às origens

o corpo nu e suas feridas

(olhosouvidosbocanarizpele

vulvavaginapênisânus)

casa aberta

mistério do outro

corpo nu

tantas casas

para onde ir?

eis o mistério

domingo, outubro 09, 2005

cine qua non featuring no ordinary love


nonlinearly

dancing

images

“when it all began?”

sequences don’t match

that guy was wearing

blue

and now he’s

naked alone in the dead alley

the shadow of death

alley

“where is she?”

in another level of reality

some calls sanity

“fucking shit no romance.

but i like this hempy end”

sábado, outubro 08, 2005

um pouco de vinícius

O poeta(excertos)


Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco, talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.


Nascemos da fonte e viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes porque – ai dos escravos! não há beleza nas origens
Voávamos – Deus dera a asa do bem e a asa do mal às nossas formas impalpáveis
Recolhendo a alma das coisas para o castigo e para a perfeição na vida eterna.


E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento

E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível

Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade


sexta-feira, outubro 07, 2005

meta (ou a luta do beta contra o reflexo no espelho


a poesia mira o espelho

e encontra o poema


o poema é imagem e diferença

a poesia não reconhece o que vê

a poesia não se enxerga

a poesia atravessa o corpo estilhaça-se


o melhor poema é avesso

à poesia que se olha e julga bela

o melhor espelho é aquele que se deixa atravessar

feito pessoa apaixonado


e do outro lado

olá do escuro

quinta-feira, outubro 06, 2005

o desejo gago




aftas na linguagem

a fala trôpega

fazia a dor fosforescer

um sentido

hoje tem


hoje tem leitura do poema Uivo ás 20h
na Faculdade de Filosofia de Campos
acompanhado por Luis Ribeiro(guitarra)
AlexandroF(baixo) e Armandinho(percussão).

quarta-feira, outubro 05, 2005

poética

a tarefa seria


a de aperfeiçoar o silêncio.


a tarefa do silêncio.

afasia



quase ninguém falou do dia do poeta

talvez porque o poeta é quase ninguém

quase ninguém prefere o silêncio eloqüente

terça-feira, outubro 04, 2005

a poesia suja

Estamos assistindo por estes dias muita coisa imunda: rescaldos de Katrinas, política-latrina. Nas oficinas poéticas que coordenava em Sampa, eu lia A Carniça do Baudelaire (1821-1867) para mostrar como o feio, o grotesco, o não-poético passava a fazer parte da poesia no início da modernidade.

Isso tudo aparece com força nestes dois poemas que estão comemorando algumas décadas da primeira leitura. O Uivo, de Allen Ginsberg (1926-1997), é um poema nada respeitável de 50 anos – a primeira leitura aconteceu em 8 de outubro de 1955, e o Poema Sujo, de Ferreira Gullar(1930), um texto jovem de 30 anos– as primeiras leituras aconteceram em novembro de 1975, no exílio de Gullar em Buenos Aires, ele lendo para Vinicius, Boal e outros (foi assim que o poema chegou aqui, gravado em fitas, com a leitura do Gullar passando de ouvido em ouvido). O palavrão, a descrição crua, a gíria, a política, a micropolítica, a história, a sinceridade ‘absoluta’. A vida como ela é.

A primeira vez que li os dois poemas, foi realmente um choque. Não o choque que tive quando fui apresentado para a poesia moderna, com o Poema só para Jaime Ovalle do Bandeira. Naquele tempo apenas fiquei impressionado em como poderia estar apreendendo uma forma de existência que era o poeta com sua melancolia, sua solidão, suas recordações – tudo aquilo se tornara eu.

Com Ferreira Gullar, eu tinha engolido o livro ‘Dentro da noite veloz’, e fiquei imensamente influenciado. Vários dos meus primeiros poemas oscilavam entre o bandeirês, o drummondês ou o gullarês. Quando cheguei ao Poema Sujo, vixe! Fiquei meio embaraçado, não necessariamente chocado. Mas lê-lo foi uma travessia, não agüentei de uma assentada. Fui lendo aos bocados. Sorvendo devagar o susto. Compreendendo.

Então, muitos anos depois, Uivo me deu aquilo que eu realmente não queria v(l)er. O lado negro mesclado à luz, o demasiado humano, eu nu. Nunca pensei encontrar um poema assim. Quando comecei a ler certas partes do Uivo em saraus e performances, passei por estranhas experiências[1]. Seqüências de arrepios, tonteiras, escotomas e, numa das leituras, a boca começou a sangrar enquanto lia a ‘Nota para pé de página de Uivo’, manchando a página do livro até hoje. Me senti recebendo ‘santo’. E olha que sou evangélico.

Dificilmente cometo um poema gigante, tenho verdadeiro nojo de poema prolixo. Só que os dois poemas em questão são enormes e ordenam o caos aparente das muitas palavras com sua construção, uma estrutura bastante pensada. E eu admiro a arquitetura, o conceito que engendra o poema. Nestes dois, a poesia nunca é liricazinha, de versinhos chumbregas sentimentalóides. Uma poesia forte, de sentido trágico, nietzschiana. Se você tiver coragem de enfrentar, leia. Se não tiver, leia também, como homenagem a dois poemas americanos que pensaram o mundo e a vida admiravelmente. Em homenagem a dois poetas americanos que foram ativistas, engajados nas lutas de seu momento histórico, querendo mais e mais democracia, justiça, igualdade, paz. Em tempos de porcarias como ‘burning bush’ e ‘lula frito’, nada melhor que a sujeira da poesia.



[1]Brincadeirinha: ‘Estranhas experiências’ é o nome do último livro de Cláudio Willer, enorme poeta e maravilhoso tradutor do Uivo.